'Sangue por fogo, fogo por sangue': a feitiçaria genética de Valíria
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| A Cidade Franca de Valíria, TWOIAF |
Siglas utilizadas: ASOIAF (As crônicas de gelo e fogo), AGOT (A guerra dos tronos), AFFC (O
festim dos corvos), ADWD (A dança dos
dragões), TWOW (The winds of winter),
TWOIAF (O mundo de gelo e fogo),
F&B (Fogo & sangue).
Os membros da Casa
Targaryen que conhecemos em As crônicas de gelo e fogo, Fogo &
Sangue e nos contos de Dunk & Egg vivem afirmando que o seu é
o sangue do dragão, o sangue da antiga Valíria, daquele que foi o maior império
de que temos notícias. Referem-se a si mesmos como dragões, uma prática nada
incomum para os próprios nobres de Westeros, que, segundo Illyrio Mopatis, "[...]
são todos iguais. Costuram algum animal em um pedaço de seda e, de repente, são
leões, dragões ou águias." (ADWD, Tyrion I).
Visto que é uma
alegoria muito usual para os westerosi, tendemos a considerá-la apenas como
tal. Mas, se você observar atentamente, os Targaryen, quando fazem (ou recebem)
essas afirmações, estão muito mais do que tecendo belas metáforas a seu favor.
Mas [Rhaegar] era mais do que um homem. Seu sangue era o sangue da
antiga Valíria, o sangue de dragões e de deuses. (AFFC, Cersei V)
Considerando que os
dragões são amplamente relacionados ao retorno da magia ao mundo, é de se
imaginar que as artes mágicas no Império Valiriano deveriam ser poderosíssimas
e profundas, graças ao seu domínio sobre esses animais. De onde veio tanto
poder? É de grande especulação e debate a origem verdadeira dos dragões no
mundo de gelo & fogo. Teriam surgido nas caldeiras das Catorze Chamas, nas
Terras do Longo Verão, e acidentalmente encontrados pelos antigos pastores valirianos?
Teriam vindo de Asshai da Sombra, trazidos para a península por um povo antigo
que ensinou aqueles pastores a domar tais feras? É possível que jamais
saibamos.
Algumas coisas são
certas, no entanto. A feitiçaria valiriana tem suas raízes em dois elementos
centrais: fogo e sangue. Os Targaryen têm características bastante distintas de
outros povos do mundo conhecido. Os valirianos de outrora tinham uma predileção
por magia de sangue e cruzamentos genéticos, como veremos.
Será que há mesmo
algo de especial nesse povo? Se sim, o quê? Como essa feitiçaria pode ter
moldado os senhores de dragões? É o que investigaremos logo abaixo.
– Toda a feitiçaria valiriana tem raízes no sangue
ou no fogo. (AFFC, Samwell V)
Como mencionei, a forma
dos Targaryen de se auto-referir pode passar despercebida ao leitor já que
parece fazer parte de uma prática comum em Westeros. Os costumes valirianos e os
dos Reinos do Pôr-do-Sol se misturaram muito antes da fala de Illyrio, no
momento em que essas culturas entraram em conflito. Quando Aegon Targaryen
desembarcou na Torrente do Água Negra, o futuro rei adotou para si um
estandarte e um lema para sua própria família, segundo o costume de Westeros,
de forma a melhor se adequar às terras que ele desejava conquistar.
Como a última
família verdadeiramente valiriana do mundo (ou seja, que possuía dragões), não
é surpresa Aegon ter escolhido palavras para sua casa que tivessem sido de
extrema importância para sua própria cultura ancestral, assim como qualquer
outra casa de Westeros parece fazer.
Apesar dessa
concessão que Aegon fez, logo que a família se estabeleceu no trono, foram os
Targaryen que, em seguida, impuseram seus próprios costumes sobre o continente,
ou melhor, mantiveram esses costumes em detrimento das leis vigentes.
A tradição dos Targaryen sempre havia sido de casar
parente com parente. [...] Essa prática remontava à Antiga Valíria, onde era
comum em muitas das famílias ancestrais, especialmente as que criavam e
montavam dragões. O sangue do dragão deve permanecer puro, dizia o
adágio. (F&B, Os filhos do dragão)
Essa tradição
controversa, especialmente perante a Fé dos Sete, distinguia a família das
demais e criou em seus membros um sentimento de superioridade em
relação às outras populações de Westeros.
Viserys lhe dissera mil vezes que a pureza da
linhagem devia ser mantida, que o sangue real era deles, o sangue dourado da
antiga Valíria, o sangue do dragão. Os dragões não acasalavam com os animais do
campo, e os Targaryen não misturavam seu sangue com o de homens
inferiores. (AGOT,
Daenerys I)
A tradição era
clara: o sangue puro da linhagem deveria ser mantido. Mas por que motivos? Mais
do que práticas exageradas de segregação da nobreza (as quais existiam e ainda
persistem entre as aristocracias do nosso mundo, em alguma medida), o incesto
valiriano tinha propósitos muito claros: manter o sangue do dragão correndo
apenas em determinadas famílias que detinham prestígio e recursos na Cidade
Franca.
Sabemos
que apenas cerca de quarenta grupos possuíam voz política e podiam lutar pelo
poder na antiga civilização, e como é que tal poder se impunha internamente e diante
do mundo? Dragões. A manutenção da linhagem sanguínea cumpria o propósito mais
crucial para a continuação do poder daquela aristocracia: a conexão com essas temíveis
feras.
– Se aqueles ovos forem chocados, vai haver outro senhor dos dragões no mundo, um que não vai ser da nossa casa. (F&B, Nascimento, morte e traição sob o governo do rei Jaehaerys I)
A
partir dessa preocupação do rei Jaehaerys I em relação aos ovos de dragão
roubados, é possível inferir que manter a linhagem era questão de sobrevivência
política para os grupos dominantes de Valíria e, com apenas os Targaryen como os
últimos senhores de dragões, assegurar que o sangue se mantivesse dentro da
família era essencial para que nenhum outro contestasse seu reinado recém
forjado.
Os
casamentos incestuosos dos valirianos eram fundados na preocupação com a
manutenção da feitiçaria do seu império e cumprem um papel tanto político
quanto mágico. O sangue era a fonte de onde partia a dominação, mas o que o
tornava tão especial?
Os Targaryen eram diferentes.
As raízes deles não estavam em Ândalos, mas na antiga Valíria, onde leis e tradições
diferentes prevaleciam. Bastava olhar para eles para saber que não eram como os
outros homens; seus olhos, seus cabelos e sua própria postura, tudo declarava
as diferenças. E eles voavam em dragões. Apenas eles dentre todos
os homens do mundo tinham recebido o poder de domar aquelas feras temíveis
quando a Destruição chegou a Valíria. (Um tempo de testes: um reino
refeito, F&B)
O
sangue do dragão dá aos valirianos e a seus descendentes diversas habilidades e
qualidades que os diferenciam de outros povos. No mundo de ASOIAF, a magia tem
um caráter sutil, mas nem sempre foi assim durante a concepção do universo pelo
autor. George Martin já até cogitou a ideia de que Daenerys tivesse poderes
pirocinéticos (controlar fogo com a mente, o que na minha cabeça é uma habilidade
nada sutil, rs).
Em
diversos momentos é dito que os Targaryen têm imunidade especial a doenças que
afligem os “homens comuns” e até certa resistência ao calor. Em ASOIAF talvez
tenderíamos a não acreditar muito nessa afirmação, pois poderia com certeza ser
uma das grandiosidades imaginárias que Viserys transmitiu a Daenerys.
– Sou o sangue do dragão – Dany lhe recordou –
Alguma vez já viu um dragão com o fluxo? – Viserys sempre afirmara que os Targaryen
eram imunes às pestilências que afligiam as pessoas comuns e, tanto quanto ela
podia dizer, era verdade. Conseguia se lembrar de estar com frio, com fome e
com medo, mas nunca doente. (ADWD, Daenerys VI)
No entanto, em
F&B vemos que tal fato também fazia parte das crenças dos Targaryen sobre
si mesmos e dos próprios meistres em relação à casa real.
Foi o sangue valiriano que a salvou, sugeriu meistre Anselm; doenças que
levavam homens comuns em questão de horas não eram páreo para o sangue do
dragão. (F&B, Nascimento, morte e traição sob o governo
do rei Jaehaerys I)
Essa qualidade dos
descendentes de Valíria não é exatamente infalível, já que alguns Targaryen
morrem de infecções em F&B, e nem protege contra envenenamentos, mas parece eficaz. O que é que, então, impedia as doenças de se alastrarem? Fala-se
muito em fogo no sangue dos
valirianos em diversos momentos:
Gostava do calor. Fazia-a sentir-se limpa. Além
disso, o irmão dissera-lhe com frequência que nunca nada estava quente demais
para um Targaryen. "A nossa é a casa do dragão", dizia. "O fogo
está em nosso sangue." (AGOT, Daenerys I)
Acreditava-se que havia fogo no sangue do dragão,
uma chama purificadora que incinerava todas essas pestes. (F&B, O
longo reinado de Jaehaerys e Alyssane: política, progênie e provação)
Isso apenas para
citar algumas passagens. Como vimos, nem sempre as metáforas e as descrições
imagéticas são apenas isso, principalmente no âmbito mágico da história. Como é
que esse fogo abrasador foi parar no sangue mágico dos valirianos? Magia de
sangue, parece seguro dizer, esta que deve ter sido a especialidade dos feiticeiros da
Cidade Franca.
Não sabemos com
segurança sob que formas esse tipo de magia pode se revelar, mas sabemos que é provavelmente
o mais poderoso de todos. O Mundo de gelo e fogo, contudo, nos dá
pistas acerca daquilo que Valíria realiza em termos de experimentação mágica e,
penso eu, nos fornece algumas respostas para aquilo que é verdadeiramente o
sangue do dragão:
Nos calabouços de Gogossos, torturadores concebiam
novos tormentos. Nas arenas de carne, feitiçaria de sangue do tipo mais sombrio
era praticada, enquanto animais eram cruzados com escravas para dar à luz
crianças deformadas meio-humanas. (TWOIAF, As Ilhas Basilisco)
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| As ruínas de Gogossos, na Ilha das Lágrimas |
"As coisas... a Mãe tenha misericórdia, não
sei como falar delas... eram... minhocas com rostos... cobras com mãos...
coisas retorcidas, viscosas, impronunciáveis que pareciam se revolver e pulsar
e revirar ao irromper da pele dela. Algumas eram menores que meu dedo mindinho,
mas uma tinha no mínimo o tamanho do meu braço... ah, o Guerreiro me proteja,
os sons que elas faziam..." (Jaehaerys e Alyssane:
triunfos e tragédias, F&B)
Se supusermos que
Aerea Targaryen e Balerion realmente tenham ido parar em Valíria (uma teoria
bastante crível) esses monstrinhos são uma amostra daquilo que se produzia nas
profundezas das Catorze Chamas, um misto entre humanos e outras criaturas. Seriam,
portanto, os próprios Targaryen outra espécie de seres humanos? Afinal, vemos
no mínimo duas outras do que se especula que sejam outros hominídeos em ASOIAF:
os ibbeneses e os homens listrados de Sothoryos, sobre os quais se diz que não
conseguem se reproduzir adequadamente com o resto dos povos, apenas majoritariamente
entre si mesmos.
No caso da família
dragão, é bem improvável, já que os Targaryen parecem se reproduzir (quase)
normalmente. Creio que as habilidades que vêm com o sangue do dragão sejam
apenas incrementos. Com que animais, então, os valirianos, digamos, trocaram
genes? Ora, com os dragões, é claro.
Crias de dragão
Os contos que os valirianos reproduziam sobre si mesmos afirmavam que eram descendentes dos dragões e parentes daqueles animais que agora controlavam. (TWOIAF, A ascensão de Valíria)
Tenham os valirianos
encontrado por acaso ovos de dragão em vulcões, ou tenham eles sido instruídos
por algum outro povo ancestral, o fato é que faz 5 mil anos que a única
civilização do mundo conhecido que domou verdadeiramente essas feras foi o
império de Valíria.
As
conexões entre dragões e seus donos são profundas e bastante peculiares, uma
ligação que não é o que classificaríamos como natural, e sim fruto de magia (a
não ser que consideremos magia como parte inerente da natureza). Assim como troca-peles
e wargs, os senhores de dragões estabelecem relações íntimas com seus animais,
o que nos leva a concluir que tal fato seja igualmente fruto de magia.
"Pode ser mesmo que os dragões sintam e ecoem
o humor de seus passageiros." escreveu o septão Barth. (Nascimento,
morte e traição sob o governo do rei Jaehaerys I, F&B)
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| Rhaego, por Morgaine le Fée |
Três luas antes do previsto, a rainha Jeyne deu à
luz uma criança natimorta tão monstruosa quanto a que Alys Harroway havia
parido, uma criatura sem pernas e braços e dotada de órgãos genitais masculinos
e femininos. (F&B, Os filhos do dragão)
Sobre o filho de Alys Harroway (também de Maegor):
[...] o menino era um monstro, com membros retorcidos, uma cabeça gigantesca e sem olhos.
Aparentemente, essas ocorrências não se
restringiram à Casa Targaryen. Das cidades que sobreviveram à Perdição de
Valíria:
A mais sinistras delas é Mantarys, um lugar em que,
segundo alguns dizem, os homens nascem retorcidos e monstruosos. (TWOIAF,
A Perdição de Valíria)
Apesar de, supostamente, não haver
senhores de dragões em Mantarys, não seria uma surpresa se soubéssemos que
alguns senhores valirianos deixaram seus genes por lá, e que casamentos entre
famílias dessa cidade e de Valíria deviam ocorrer com muita frequência, na
verdade é quase óbvio que isso tivesse acontecido.
Como nos provou a maegi lhazarena, a magia de sangue nem sempre dá o que foi pedido.
O nascimento de seres tão esquisitos pode ser um dos efeitos colaterais de
séculos e séculos de feitiços e experimentos sombrios. No início, é de se
imaginar que os valirianos recorreram a ela apenas para buscar maneiras de se
conectarem aos recém adquiridos dragões, e esse tipo de magia foi a solução
mais eficiente encontrada.
Especula-se que tenham
sido os feitiços, usados de maneira descontrolada, que trouxeram a Perdição
sobre Valíria, um tiro pela culatra que varreu a civilização do mapa. Gogossos
também sofreu uma calamidade que a deixou sem população: a chamada Morte
Vermelha, que dizimou todos os seus habitantes. Parece que o uso em excesso de
magia de sangue resulta em catástrofes para aqueles que a praticam.
Conclusão
O Império Valiriano há muito colapsou
no que hoje são as águas ácidas e ferventes do Mar Fumegante, mas suas práticas
de magia e feitiçaria impactam a história vigente dos livros de inúmeras
maneiras. Da forja do aço valiriano, aos berrantes infernais e à dominação
sobre os dragões, os feiticeiros construíram um império com fogo e sangue.
Aqui, percorremos as características das experimentações genéticas dos
valirianos, mas há muito ainda que explorar nesse âmbito tão misterioso do
universo de George Martin.
Os processos e, digamos, a verdadeira
prática de tais feitiços e rituais talvez jamais conheçamos. Eles sacrificavam
dragões? Bebiam seu sangue? Como conseguiram alcançar tais feitos? É muito do
feitio do Martin nos dar apenas pequenos elementos e deixar o resto para a
nossa imaginação completar.
Com este texto de forma alguma pretendi
apresentar alguma teoria nova, ou fazer uma análise sobre a qual ninguém jamais
se debruçou, mas, sim, quis trazer à tona elementos que por vezes estão em
segundo plano no decorrer de ASOIAF e que considero extremamente interessantes.
Obrigado por ler!
Palavras são vento, mas sangue é poder. (TWOW, The forsaken)






eu sou fã da pessoa certa
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ExcluirGostei muito do artigo! Parabéns!
ResponderExcluirbrigado pela leitura!!
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